CARTA DE PRINCÍPIOS FEMINISTAS PARA AS FEMINISTAS AFRICANAS

 

"PREÂMBULO: CHAMARMO-NOS FEMINISTAS

Nós nos definimos e identificamos publicamente como feministas porque celebramos as nossas identidades e políticas feministas. Reconhecemos que o trabalho de lutar pelos direitos das mulheres é profundamente político e o processo de identificação é igualmente político. Ao escolhermos ser chamadas de Feministas colocamo-nos em uma posição ideológica clara. Ao nos chamarmos Feministas politizamos a luta pelos direitos das mulheres, questionamos a legitimidade das estruturas que mantêm as mulheres subjugadas, e desenvolvemos ferramentas para análise e ação transformadoras. Enquanto feministas africanas, temos identidades múltiplas e variadas. Somos mulheres africanas - vivemos aqui em África e mesmo quando vivemos em outro lugar, o nosso foco é sobre a vida das mulheres africanas no continente. A nossa identidade Feminista não se qualifica com “se”, “mas” ou “porém”. Somos feministas. Ponto.

 

A NOSSA COMPREENSÃO DO FEMINISMO E DO PATRIARCADO

Enquanto feministas africanas, a nossa compreensão do feminismo coloca as estruturas e sistemas patriarcais de relação social, que estão incorporados em outras estruturas opressivas e exploradoras, no centro da nossa análise. O patriarcado é um sistema de autoridade masculina que legitima a opressão das mulheres através de instituições políticas, legais, econômicas, culturais, religiosas e militares. O acesso e controlo dos homens sobre os recursos e recompensas dentro da esfera privada e pública ganha a sua legitimidade na ideologia patriarcal de dominação masculina. O patriarcado varia no tempo e no espaço, o que significa que ele também muda ao longo do tempo, e varia de acordo com a classe, raça, bem como com as relações e estruturas étnicas, religiosas e globais. Além disso, na atual conjuntura, o patriarcado não só muda de acordo com esses fatores, mas está inter-relacionado com e determina as relações de classe, raça, etnia, religião, e imperialismo mundial. Assim, para desafiar o patriarcado de forma eficaz, também é também necessário desafiar os outros sistemas de opressão e exploração, que frequentemente se apoiam mutuamente.

O nosso entendimento do patriarcado é crucial porque nos oferece, enquanto feministas, uma estrutura na qual podemos expressar a totalidade das relações de opressão e de exploração que afetam as mulheres africanas. A ideologia patriarcal permite e legitima a estruturação de cada aspeto das nossas vidas, estabelecendo a estrutura através da qual a sociedade define e idealiza homens e mulheres, e também constrói a supremacia masculina. A nossa tarefa ideológica enquanto feministas é entender este sistema, e a nossa incumbência política é para acabar com ele. O nosso foco é lutar contra o patriarcado como um sistema ao invés de lutar contra individualidades, homens ou mulheres. Portanto, como feministas, definimos o nosso trabalho no sentido de investir energias individuais e institucionais na luta contra todas as formas de opressão e exploração patriarcal.

 

A NOSSA IDENTIDADE COMO FEMINISTAS AFRICANAS

Como Feministas que são de/trabalham/vivem em África, nós reivindicamos o direito e o espaço para sermos Feministas e Africanas. Reconhecemos que não temos uma identidade homogênea enquanto feministas - aceitamos e celebramos a nossa diversidade e o nosso compromisso comum com uma agenda transformadora para as sociedades africanas e para as mulheres africanas em particular. É isso que nos dá nossa identidade feminista comum.

As nossas lutas atuais enquanto feministas africanas estão intrinsecamente ligadas ao passado do nosso continente – contextos pré-coloniais diversos, escravidão, colonização, lutas de libertação, neocolonialismo, globalização, etc. Os Estados Africanos modernos foram construídos nas costas das feministas africanas que lutaram ao lado dos homens para a libertação do continente. À medida que criamos novos Estados Africanos neste novo milênio, também criamos novas identidades para as mulheres africanas, identidades como cidadãs plenas, livres da opressão patriarcal, com direitos de acesso, propriedade e control sobre os recursos e os nossos próprios corpos, e utilizando aspetos positivos das nossas culturas de forma libertadora e construtiva. Também reconhecemos que as nossas histórias pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais exigem medidas especiais a serem tomadas em favor de determinadas mulheres africanas em diferentes contextos.

Nós reconhecemos os ganhos históricos e significativos alcançados pelo Movimento das Mulheres Africanas ao longo dos últimos quarenta anos, e ousamos reivindicar esses ganhos enquanto feministas africanas - eles aconteceram porque as feministas africanas abriram o caminho, desde o nível de base acima; gizaram estratégias, organizaram-se em rede, entraram em greve, marcharam em protesto,  fizeram pesquisas, análises, “lobbying”, criaram instituições, e sem medir esforços fizeram tudo para que os Estados, os empregadores, e as instituições reconhecessem a humanidade das mulheres.

Como feministas africanas, também somos parte de um movimento feminista mundial contra a opressão patriarcal em todas as suas formas. As nossas experiências estão ligadas às das mulheres em outras partes do mundo com as quais partilhámos solidariedade e apoio ao longo dos anos. Enquanto afirmamos o nosso espaço como feministas africanas, também nos inspiramos nas nossas ancestrais eministas que abriram caminho e tornaram possível a afirmação dos direitos das mulheres africanas. Ao invocarmos a memória dessas mulheres cujos nomes raramente são registrados nos livros de história, insistimos que a alegação de que o feminismo foi importado do Ocidente para a África é um profundo insulto. Nós reivindicamos e afirmamos a longa e rica tradição de resistência das mulheres africanas ao patriarcado em África. Doravante reivindicamos o direito à teorizar, por nós mesmas, escrever para nós mesmas, formular estratégias para nós mesmas e falar por nós mesmas como feministas africanas.

ÉTICA INDIVIDUAL

Como feministas individuais, temos o compromisso e acreditamos na igualdade de género baseada em princípios feministas que são:

  • A indivisibilidade, inalienabilidade e universalidade dos direitos humanos das mulheres.

  • A participação efetiva na construção e fortalecimento de organizações e redes progressivas para o feminismo africano, a fim de provocar uma mudança transformadora.

  • Um espírito de solidariedade feminista e de respeito mútuo com base na discussão franca, honesta e aberta sobre a diferença entre umas e outras.

  • O apoio, desenvolvimento, e cuidado de outras feministas africanas, juntamente com o cuidado com o nosso próprio bem-estar.

  • A prática da não-violência e a realização de sociedades não-violentas.

  • O direito de todas as mulheres à viver livres da opressão patriarcal, discriminação e violência.

  • O direito de todas as mulheres à ter acesso aos meios de subsistência sustentáveis, bem como à proteção social, incluindo cuidados de saúde de qualidade, educação, água e saneamento.

  • A liberdade de escolha e autonomia em relação às questões de integridade física, incluindo direitos reprodutivos, aborto, identidade sexual e orientação sexual.

  • Um engajamento crítico com discursos de religião, cultura, tradição e domesticidade com um foco sobre a centralidade dos direitos das mulheres.

  • O reconhecimento e apresentação das mulheres africanas como sujeitos e não objetos do nosso trabalho, e como agentes em suas vidas e sociedades.

  • O direito à relacionamentos pessoais saudáveis, significativos e mutuamente respeitosos.

  • O direito de expressar a nossa espiritualidade dentro ou fora das religiões organizadas.

  • O reconhecimento da agência feminista das mulheres africanas que têm uma história rica que tem sido em grande parte não documentada e ignorada.

 

ÉTICA INSTITUCIONAL

Como organizações feministas assumimos os seguintes compromissos:

  • Defender a abertura, transparência, igualdade e responsabilidade nas instituições lideradas por feministas.

  • Afirmar que ser uma instituição feminista não é incompatível com ser profissional, eficiente, disciplinada e responsável.

  • Insistir e apoiar os direitos de trabalho das mulheres africanas, incluindo governação igualitária, remuneração justa e igual, e políticas de maternidade.

  • Utilizar o poder e a autoridade de forma responsável, e gerir as hierarquias institucionais respeitando todas e todos nelas envolvidos. Acreditamos que os espaços feministas são criados para elevar e emancipar as mulheres. Em nenhum momento devemos permitir que nossos espaços institucionais se transformem em locais de opressão e enfraquecimento de outras mulheres.

  • Exercer a liderança e gestão responsável das organizações, seja em uma capacidade remunerada ou não, e que se esforce para defender valores e princípios feministas e críticos em todos os momentos.

  • Exercer liderança responsável nas organizações feministas, tendo em consideração as necessidades das outras para a autorrealização e o desenvolvimento profissional. Isso inclui a criação de espaços para a partilha de poder entre gerações.

  • Criar e manter organizações feministas para promover a liderança das mulheres. As organizações e redes de mulheres devem ser dirigidas e geridas por mulheres. É uma contradição de princípios de liderança feministas serem homens a liderar, gerir e sendo porta-vozes de organizações de mulheres.

  • Organizações feministas como modelos de boas práticas na comunidade de organizações da sociedade civil, garantindo que os recursos financeiros e materiais mobilizados em nome das mulheres africanas são colocados ao serviço das mulheres africanas e não desviados para atender interesses pessoais. Sistemas e estruturas com códigos de conduta apropriados para prevenir a corrupção e fraude, e para gerir as disputas e reclamações de forma justa, são os meios de assegurar institucionalização dentro das nossas organizações.

  • Esforçar-se para informar o nosso activismo com a análise teórica, e conectar a prática de activismo com a nossa compreensão teórica do feminismo africano.

  • Estar abertas a avaliar criticamente o nosso impacto como organizações feministas, e ser honestas e pró-ativas com relação ao nosso papel no movimento.

  • Opor-se a subversão e / ou sequestro de espaços feministas autónomos para servir a agendas conservadora de direita.

  • Garantir que a criação de organizações feministas não-governamentais ou de massa seja feita em resposta às necessidades reais expressas pelas mulheres que precisam ser atendidas, e não para servir interesses egoístas e agendas de geração de renda inexplicáveis.

 

LIDERANÇA FEMINISTA

Como líderes do movimento feminista, reconhecemos que a agência feminista tem popularizado a noção das mulheres como líderes. Enquanto líderes feministas, estamos comprometidas em fazer a diferença fundamental na liderança, com base no entendimento de que a qualidade da liderança das mulheres é ainda mais importante do que o número de mulheres na liderança. Acreditamos e nos comprometemos com o seguinte:

  • Ética de trabalho disciplinada e guiada por integridade e responsabilidade em todos os momentos.

  • Ampliar e fortalecer uma rede multigeracional e uma fonte de líderes feministas em todo o continente.

  • Assegurar que o movimento feminista é reconhecido como uma circunscrição legítima para as mulheres em posições de liderança.

  • Construir e expandir a nossa base de conhecimento e informações de forma contínua, como alicerce para a formação da nossa análise e estratégias e para defender uma cultura de aprendizagem começando por nós mesmas dentro do movimento feminista.

  • Nutrir, orientar e providenciar oportunidades para jovens feministas de uma forma não maternalista.

  • Dar crédito ao trabalho, intelectual e outros, das mulheres africanas no nosso trabalho.

  • Criação de tempo para responder de forma competente, credível e fiável às outras feministas que necessitem de solidariedade e apoio seja ele político, prático ou emocional.

  • Estar abertas a dar e receber revisões e feedback construtivo de outras feministas."