Nenhuma a menos!

Ilustração por Paula Agostinho

Ilustração por Paula Agostinho

Por leopoldina fekayamãle

Lurdes Manico, de 19 anos, foi abusada sexualmente até a morte pelo padrasto, na província de Benguela. Além de Lurdes, outras meninas em Benguela e noutras províncias de Angola foram vítimas de abuso sexual nos últimos tempos. Estamos em época dos 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres no mundo todo, que decorre de 25 de novembro a 10 de dezembro, e as notícias, relatos, denúncias sobre os atos violentos contra as vidas das mulheres em Angola e no resto do mundo não cessam.

Iniciar este texto com um exemplo de crime hediondo de violência é, para mim, o lembrete doloroso de que a violência contra meninas e mulheres em Angola continua a ser um problema bastante real, profundo, e bem à nossa vista. O caso relatado acima foi tornado público por órgãos da comunicação social, no entanto, como a maioria de nós sabe, são muitos os casos de violência física, sexual, patrimonial, psicológica, etc., que mulheres no nosso país sofrem e que não são denunciados ou se tornam públicos.

Continuamos imersos numa cultura que assassina mulheres de diferentes formas, sendo a mais cruel e irreversível aquela em que as vidas se perdem. Enquanto socialmente não reconhecermos e identificarmos com a devida atenção as causas estruturais da violência contra as mulheres, que se materializam nas relações de poder desigual entre os homens e as mulheres, nos valores culturais que muitas vezes objetificam os nossos corpos e os entendem como coisas que podem ser “consumidas, controladas, subjugadas”, vamos dando passos demasiado lentos na luta pela erradicação de todo o tipo de violência contra as mulheres e meninas em Angola.

Enquanto continuarmos sem prestar atenção às formas como se silencia e culpabiliza as vítimas de violência na nossa sociedade, ao mesmo tempo em que se protege explicita e implicitamente os agressores, vidas continuarão a ser perdidas no processo. Se seguirmos educando e dizendo às raparigas que as suas vozes têm de estar sempre depois da voz de um homem, que têm de ser submissas seja em relações conjugais ou não, que têm de colocar como meta central das suas vidas conseguir um casamento e mantê-los a todo o custo – independente do quão tóxica e violenta as relações possam ser em muitos casos – estaremos a ensiná-las a silenciarem-se diante de situações de violência. Enquanto continuarmos em primeiro lugar a perguntar às mulheres o que elas fizeram para serem assediadas, violentadas física, sexual e psicologicamente, sem nos lembrarmos do agressor, estaremos nós a silenciá-las e a perpetuar a cultura de culpabilização da vítima.

E culpabilizar a vítima não é apenas uma acção que vem de pessoas singulares ou das famílias. Infelizmente as nossas instituições públicas e privadas seguem as mesmas dinâmicas culturais que silenciam e desamparam mulheres vítimas de quase todo o tipo de violência. Os canais de denúncia ou são inexistentes, ou são insuficientes, ou estão despreparados para lidar de forma assertiva e humanizada com vítimas de violência baseada no género. Continuamos a ter mulheres que são questionadas por agentes da polícia sobre o que terão feito para “provocar” atos violentos da parte dos seus companheiros, que na maioria dos casos são os maiores agressores. Continua a ser difícil a separação (divórcio) quando esta é solicitada pelas mulheres em relações em que sofrem violência ou simplesmente já não se sentem bem, havendo em muitos casos várias tentativas de reconciliação e persuasão para que elas continuem nestes relacionamentos.

Continua a ser muito difícil para as mulheres vítimas de violência quebrarem silêncios, seja por medo de retaliação dos agressores, sendo que há um histórico de impunidade ou de trato bastante leve aos mesmos em casos públicos de violência contra mulheres; seja porque não existem meios seguros para denunciar e expor os abusos que sofrem; seja porque são silenciadas por meio de comentários e pressão social para preservar a imagem de quem agride, para “não desestabilizar” as famílias, etc. O silenciamento de mulheres vítimas de violência é real e não acontece só quando se diz “cala a boca”, acontece quando dizemos “aguenta só mais um bocado que as coisas vão mudar”, “ora só mais por ele que Deus vai lhe transformar”, “não podes sair de casa e deixar os teus filhos”, “não podes expor o teu tio mesmo que ele tenha abusado de ti, perdoa só e fica tudo em família”, “o teu primo te violentou, mas vamos reunir e resolver tudo em família sem precisar denunciar”, “é triste que tenhas sido violentada, mas se o denunciares podes estragar a vida dele”, e a lista de frases pode ser infinita. O silêncio, infelizmente, não tem protegido e nem beneficia as mulheres. Em situações de violência os únicos que ganham com o silêncio das vítimas são os agressores.  

Não temos também políticas públicas efetivas e consistentes que amparam mulheres e meninas vítimas de violência, e isso constitui também um ato de violência e desrespeito aos direitos humanos das mulheres por parte do Estado. Um país que não protege devidamente as suas cidadãs e cidadãos – e não parece se esforçar muito para isso – não é um país que se desenvolve de forma justa e alcance níveis de bem-estar social significativos. O Brasil, por exemplo, criou as ‘delegacias de mulher’ que, resumindo, são esquadras especializadas da polícia civil, que executam actos de prevenção, protecção e investigação de crimes de violência doméstica e violência sexual contra as mulheres nos diferentes estados do Brasil; tem também canais de denúncia rápidos como o 180 para onde as mulheres podem ligar e serem prontamente atendidas em muitos casos; ainda, pela Lei Maria da Penha, as mulheres vítimas de violência podem requerer o divórcio ou a dissolução da união de forma mais ágil e rápida. O caso recente da apresentadora brasileira Ana Hickmann[1] foi um exemplo da importância da existência dessas alternativas para as mulheres no Brasil. Naturalmente, estas são medidas que têm os seus pontos fracos, que não acabaram ou resolveram completamente o problema da violência contras as mulheres no país, não são medidas perfeitas – há muito que melhorar. No entanto, são medidas adotadas pelo Estado brasileiro – e fruto das lutas das próprias mulheres – que têm tido um impacto significativo e importante na luta pela garantia dos direitos humanos das mulheres. Estas medidas são aqueles “pequenos” passos que importam.

O Estado Angolano, por sua vez, assumiu compromissos internacionais e continentais relativamente ao respeito e à promoção dos direitos humanos das mulheres, com destaque aqui para a ratificação do Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre os Direitos da Mulher em África (Protocolo de Maputo), que é o principal instrumento jurídico para a protecção dos direitos das mulheres e das raparigas em África e um dos mais consistentes sobre os direitos das mulheres em todo o mundo. Internamente, legislação como a Política Nacional para a Igualdade e Equidade do Género e a Lei n.o 25/11 da Violência Doméstica foram aprovadas como passos no compromisso institucional em relação à equidade de género e dignidade das mulheres. Apesar destes compromissos, a violência contra as mulheres e meninas continua a ser a maior violação dos direitos humanos no país. Na prática e vida real, os compromissos assumidos pelo Estado continuam sem se materializar de forma efectiva na protecção das vidas das mulheres.

Continua a ser significativo o vácuo entre os conteúdos dessas ferramentas legais, os pronunciamentos políticos e a realidade das mulheres e meninas em Angola. Estatísticas recentes, apesar de insuficientes, não deixam de acentuar a gravidade do problema: mais de 25 mil casos de violência doméstica foram registados em 2022 (Fonte: [2]Gira Notícias, via MASFAMU); destes casos, 15.935 foram praticados contra mulheres e meninas. Ainda, dados do INE (2016/2017) referem que em Angola 32% das mulheres foi vítima de violência física desde os 15 anos; 8% foi vítima de violência sexual em algum momento das suas vidas; e 34% das mulheres de 15-49 anos e casadas em algum momento sofreu violência conjugal, física ou sexual.

Penso nos poucos dados que conseguimos ter acesso e só me vem à cabeça os milhares de casos que existem por aí e não chegam a ser registados, as inúmeras vidas que se devem ter perdido pelo caminho e as mulheres que podiam ter sido salvas se tivéssemos um Estado comprometido com a vida das suas pessoas, sobretudo àquelas em situação de vulnerabilidade e afetadas por desigualdades históricas. Temos de tomar para nós em todos os níveis, seja institucional, familiar, religioso, etc., que é imprescindível não deixar nenhuma mulher para trás e contrapor as dinâmicas que as subalternizam. Enquanto uma mulher for vítima de violência baseada no género todas as outras o poderão ser.

A violência contra as mulheres em Angola atinge vários níveis, tem várias ramificações, tantas que poderiam dar em infinitos textos de reflexão. Continuamos a ter os crimes de violência contras as mulheres zungueiras, que são a maioria no sector informal da nossa economia, praticados por agentes (polícias, fiscais) do Estado. Continuamos a ter um Sistema de Saúde que deixa bastante a desejar por causa das suas deficiências, o que se traduz em vários problemas como, por exemplo, a fragilidade das nossas maternidades, isso nos locais em que existem, onde o atendimento e a prestação de assistência médica e medicamentosa são muitas vezes insuficientes, gerando situações graves de violência obstétrica – um problema que o Ondjango Feminista na 5ª edição do seu Informe Tuba![3] abordou exaustivamente. Ademais, não temos políticas públicas consistentes, efectivas e com carácter estrutural voltadas à Educação Sexual, ao acesso à informação segura sobre Saúde Sexual e Reprodutiva para meninas e mulheres, bem como o acesso a métodos contraceptivos, o que, dentre outras coisas, reflete várias doenças que afetam jovens e mulheres no país, e também a elevada taxa de gravidez na adolescência – temos um dos índices mais altos de África – resultando em várias consequências negativas para o desenvolvimento social e económico de raparigas e jovens no nosso país. Há ainda o problema da falta de investimento em infra-estruturas escolares que faz raparigas frequentarem escolas sem acesso à água e outras condições de saneamento, dificultando assim a sua higiene menstrual e contribuindo para o facto de muitas raparigas no país deixarem de ir à escola em época de período menstrual, prejudicando-se o seu rendimento escolar.

São vários os campos que temos de olhar para gerarmos transformações na realidade das meninas e mulheres em Angola. E o nosso olhar precisa ser devidamente informado, precisa ir a fundo e dialogar com organizações da sociedade civil, grupos e associações de mulheres que há muito tempo têm feito um trabalho de advocacia pelos direitos humanos, com foco nos direitos das mulheres, no país. Há muito que falamos nisso, no entanto, dentre outras coisas, reitero o que vários grupos de mulheres têm estado a dizer e continua a ser urgente:

- Que se promova um debate nacional e contínuo, a nível parlamentar e da sociedade civil, sobre a violência contra a mulher nas suas várias dimensões, particularmente: a violência obstetrícia, a violência doméstica, a violência policial contra as zungueiras, a violência contra as mulheres no sistema carcerário, a violência económica, tendo em vista iniciar e propor legislação adequada para a protecção efectiva das mulheres nestas condições e espaços.

- Que, por um lado, advoguemos pela reposição e aumento no Orçamento Geral do Estado (OGE) da verba para apoio às vítimas de violência, que foi retirada há mais de dois anos; e, por outro lado, que se criem mecanismos para que esta verba seja de facto para os fins a que se destina.

- Que o Executivo cumpra o compromisso de eliminar as práticas nocivas assumidas no âmbito do Protocolo de Maputo bem como a criação das condições materiais para a cabal aplicação das medidas administrativas contidas na Lei da Violência Doméstica, nomeadamente, o mecanismo de protecção a vítimas que deveria incluir a criação de esquadras de polícia especiais para o atendimento de mulheres vítimas de violência com pessoal devidamente capacitado.

- Que se invista na criação de um sistema de estatísticas robusto, consistente, confiável que informe as políticas públicas destinadas a combater a violência contra as mulheres de forma transversal.

- Que se faça um investimento para a reforma do sector de segurança pública, focando-se particularmente na reforma das estruturas da Polícia Nacional, na adopção de uma política integrada que visa a inclusão dos direitos humanos na formação dos efectivos da polícia de modo a garantir a segurança das cidadãs e dos cidadãos ao mesmo tempo que se humaniza o atendimento às vítimas de violência.

Muitas mais medidas têm sido propostas por organizações de mulheres no país e é preciso olhar para as mesmas com seriedade. Nenhuma sociedade é realmente sã se parte dela está em situação de vulnerabilidade, seja de que natureza for. Thomas Sankara[4], num contexto diferente do nosso, disse palavras que continuam ainda a fazer bastante sentido para nós hoje:

“A revolução e a libertação das mulheres andam juntas. Nós não falamos de emancipação feminina como um ato de caridade ou fora de uma onda da compaixão humana. É uma necessidade básica para a revolução triunfar. As mulheres seguram a outra metade do céu.”

Na minha tradução das palavras de Sankara, dentre outras coisas, hoje a revolução significa lutarmos por um país que erradique todas as formas de subjugação, pobreza, desigualdades e violência contra todas as mulheres, o que se estende a todas as pessoas na nossa sociedade. Fica a questão: vamos à revolução?


[1] https://www.youtube.com/watch?v=lrdH2Oddk8k

[2] https://www.giranoticias.com/sociedade/2023/06/15722-pais-regista-mais-de-25-mil-casos-de-violencia-domestica-em-2022.html

[3] https://www.ondjangofeminista.com/informe

[4] https://www.pensador.com/autor/thomas_sankara/

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O ONDJANGO FEMINISTA NA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

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Lugar de escrita - Bolo Preto