Lugar de escrita - Ponciá Vicêncio

obra de conceição evaristo

Por Tabitha Dorcas

Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte – Brasil, a 29 de novembro de 1946, é uma literata, professora aposentada e escritora polígrafa da literatura brasileira. Tem atuado prolificamente no universo literário brasileiro e também como pesquisadora ministrando palestras em diversas universidades pelo Brasil. A autora teve o seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, publicado em 2003. Ponciá, a protagonista e cujo nome dá título ao livro, é uma menina negra que não gosta do seu nome, o que suscita questões sobre por que razão assim se chama e que história carrega esse nome. E, ainda, quem foi Vicêncio? Tudo isso é desvendado no livro.

Moradora da Vila Vicêncio, Ponciá retoma o relato doloroso da escravidão de negros no Brasil e em simultâneo vemos a sua condição e a dos seus semelhantes após a abolição da escravatura. Em uma sequência não linear é narrada a sua história desde o seu nascimento. Ponciá imitava o avô desde que começou a andar, cedo fez um boneco de barro assustadoramente parecido com ele, apesar de que quando o avô morreu ela era só uma bebé de colo. O seu avô, Vicêncio, tinha só um braço inteiro e vivia a esconder o outro braço cortado. Quando era jovem revoltou-se contra a sua condição de pessoa escravizada, matou a esposa e tentou suicídio optando pela automutilação, o que falhou e o deixou com o braço "cotó".

Ponciá e a sua mãe, Maria Vicêncio, fazem todo o tipo de obra de arte com barro. Quando o seu pai falece, ela decide ir para a terra do branco: a cidade grande. Viaja de comboio até à cidade e consegue um emprego como empregada doméstica, mais tarde junta-se ao homem por quem apaixonou-se, mas depois de sofrer sete abortos e sentir imensas saudades da família, Ponciá entra num estado de apatia enorme e sofre agressões físicas por parte desse homem. Tudo o que lhe resta são memórias.

“Ela [Ponciá] gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar. Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro.” (pág. 18)

Através do diálogo entre o passado e o presente, entre as lembranças e as vivências, entre o real e o imaginado, e sobretudo através da memória, o leitor é levado a navegar no íntimo dos personagens, absorvendo conhecimento sobre as suas complexidades. Além de Ponciá, o enredo revela as memórias do seu irmão Luandi que depois dela também vai para a cidade grande à sua procura. No entanto, durante essa busca pela irmã desabrocha nele o sonho de tornar-se soldado motivado pelo facto de ter conhecido Nestor, um soldado que era negro. Afinal, no contexto histórico do enredo, um soldado negro não era alguém que se via todos os dias, porque a maioria das pessoas negras naquele tempo viviam sob condições de precariedade social. Luandi sabia que para tornar-se um soldado precisava estudar, então, contou com a ajuda de Nestor para aprender a ler e a escrever. A sua mãe, por sua vez, ficou sozinha em casa e preferiu andar de vilarejo em vilarejo, até reencontrar os filhos.

A leitura deste romance está longe de ser a mais agradável pela dureza de alguns episódios que são descritos, entretanto, em simultâneo, a leitura está bem perto de ser uma das mais penetrantes para qualquer pessoa, pela sensibilidade que a autora apresenta – uma sensibilidade que muitas vezes se perde nas histórias de ciências e nos artigos sobre a escravidão.

“Filho de ex-escravos, [o pai de Ponciá] crescera na fazenda levando a mesma vida dos pais. Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo em que o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro.” (pág. 17)

Várias partes do livro deixaram-me absorta, o trecho acima representa uma delas. A manutenção da cultura escravagista mesmo depois da abolição da escravidão é algo que o livro faz questão de abordar e o faz muito bem. Foi-me difícil separar ficção da realidade nesse ponto, mas pensar que ambas bebem um pouco uma da outra deu-me tranquilidade.

Ao fim deste texto tudo o que posso deixar aqui acentuado é que há muito por se dizer sobre o livro: em poucas páginas, a autora traz elementos que ajudam os negros a contextualizar aspectos socio-históricos sobre a condição de vida de pessoas negras após a escravidão; a entender as relações entre raça, classe e género e a violência patrimonial por parte de ex senhores de pessoas escravizadas; a contrapor as lacunas sobre o conhecimento da história dos negros do Brasil após a escravidão e a perseverança, bem como os resquícios da escravidão que se prolongaram.

Considero que a leitura dessa obra é muito necessária: é uma relíquia. E deixo aqui registado que depois de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo é a escritora negra da literatura contemporânea brasileira que conquistou o meu coração com essa obra.

Next
Next

Segunda edição da Escola Feminista