Lugar de escrita - Quarto de Despejo

Obra de Carolina maria de Jesus

Por Tabitha Dorcas

Apresentar o livro Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus exige-nos parar um pouco e falar da autora. Carolina foi uma escritora negra brasileira que viveu durante o século XX. Fazia parte de uma família marcada por elevada precariedade socioecónomica, fruto também do contexto da sua época. Fez os seus estudos só até à segunda classe, entretanto, apesar do pouco tempo na escola desenvolveu rapidamente gosto pela leitura e escrita. Após vários desafios no seu caminho, Carolina muda-se para a favela do Canindé, na cidade de São Paulo (Brasil), e é nessa favela onde vai aprofundar a sua relação com a escrita. Além disso, a mesma favela tem um lugar central na obra que pretendo apresentar aqui.

Carolina é considerada uma das mais importantes escritoras negras da literatura brasileira. A autora é uma poetisa nata, dona de uma consciência de classe invejável, a sua obra tem relevância não só literária, mas também social e política. A sua escrita passava por diariamente registar os seus dissabores enquanto mulher negra a viver em precariedade, por fazer prosa com a miséria da favela, até que finalmente decide procurar por alguém que a ajudasse a publicar o seu primeiro livro, realizando um dos seus maiores sonhos que era o de ser uma escritora publicada. No livro Quarto de Despejo, a escrita de Carolina é atravessada pelos problemas socioecónomicos da favela de Canindé, pelas desigualdades sociais e as várias lutas diárias pela sobrevivência, no entanto, o que ela relata convida-nos a aguçar o nosso olhar crítico sobre as várias questões sociais à nossa volta, desde o passado até à contemporaneidade.

Se me perguntassem qual era a religião da Carolina Maria de Jesus, eu responderia que era a literatura. Carolina fazia da literatura a sua companheira inseparável. Ela acreditava com veemência que podia mudar a sua vida e a de seus filhos, três no total, através da literatura, e acreditava também que a literatura lhe daria a instrução que não teve a oportunidade de continuar a receber quando teve de desistir escola. A sua relação com a literatura não foi em vão, permitiu-lhe enriquecer o seu vocabulário e desenvolver as suas habilidades na escrita. Diante da trajetória de vida de Carolina penso que talvez tenhamos muito que aprender com a "religiosidade" baseada em leitura e prática diária da escrita.

Quarto de Despejo é um livro autobiográfico. A autobiografia que este nos dá a conhecer é a da própria Carolina Maria de Jesus. São páginas da vida de uma mulher negra, muito pobre e mãe solteira de três filhos que os tenta educar da melhor forma possível. Essa mãe dá muito de si para que os filhos percebam a importância dos estudos, dá-lhes amor e carinho, mas algumas vezes tem também de recorrer a corretivos mais severos para mantê-los na linha porque, ao fim das contas, a favela era um ambiente muitas vezes “hostil” e duro de se viver. Essa mulher era muito querida por alguns dos seus vizinhos e vizinhas por causa da sua amabilidade ao relacionar-se com as pessoas à sua volta, inclusive por isso, de vez em quando, havia trocas de comida entre a vizinhança quando uns ou outros estivessem a precisar. Ademais, ela não gostava de confusão e evitava ficar na roda de fofoca das vizinhas.

Enquanto lia esse livro a minha garganta enrolava-se até formar vários nós, isto deveu-se principalmente a um elemento: a fome. No livro, a fome tem uma omnipresença assustadora. Obviamente, ter fome é normal, não há corpo vivo que não a sinta. Porém, o que dizer de uma mulher que quase todos os dias não sabe se terá refeição para si e nem para as suas crianças, e quando sabe é porque essa garantia vem de recolha no lixo? Atravessava-me uma imensa tristeza a cada página que lia, e é o mesmo sentimento que me aparece quando vejo alguém a vasculhar a lixeira procurando alimentos. Durante a leitura, havia vezes em que ficava pensativa e fraca demais para lidar com aquele misto de letras nos papéis.

No livro, Carolina mostra que a favela, na época em que lá viveu, era um lugar onde as crianças estavam fortemente expostas à delinquência, à pornografia, à violência, ao estupro, à gravidez não planejada e precoce, etc. Era um lugar onde os ricos gostavam de ir para filmar, mas jamais viver; onde os políticos se mostravam benevolentes em vésperas de campanha eleitoral, mas depois se esqueciam. Carolina mostra um lugar marginalizado socialmente, em quase nada apreciado; um lugar onde padres pregavam demasiado sobre multiplicar a terra, mesmo sem que estivessem criadas as condições para uma vida menos sofrida. A favela é o quarto de despejo! E quem dá importância a um quarto de despejo?

Infelizmente, muito do que é descrito na favela do livro de Carolina não difere de várias situações que ainda acontecem em diferentes periferias de Angola, principalmente da província de Luanda. Quem liga para as periferias? Estamos "carecas" de saber do índice de criminalidade das nossas periferias, da forma como as crianças se endurecem nelas e verbalizam isso nos seus gestos; do preocupante índice de abandono escolar por causa da gravidez precoce; das t-shirts, bicicletas e "gloriosas maratonas" oferecidas em tempos de campanha eleitoral quando, no entanto, carecemos de mais água potável, de energia elétrica, de escolas, de creches públicas, etc. A ausência de água potável nas periferias de Luanda é tão necessária quanto era para Carolina que, por falta dela, era chamada muitas vezes de "negra fedida". Com poucos cruzeiros na mão o que seria prioritário comprar: água, sabão ou comida?

Ao fim do livro, fica-nos uma tristeza ainda maior por sabermos que esta não é uma obra de ficção: é sobre a realidade dolorosa da vida de uma mulher que passava muita fome, que se alimentava de comida que encontrava no lixo, que revendia coisas encontradas no lixo e lidava com vários dramas da sua vizinhança. É a realidade de uma mulher que via o mundo cair em pedaços quando as suas crianças choravam de fome. No livro, tal como Carolina, muitas outras mulheres passam por isso, nomeadamente as suas vizinhas, sendo que algumas, inclusive, têm as suas dificuldades multiplicadas pois além de terem de enfrentar problemas sociais e económicos, enfrentam também maridos sanguessugas e violentos. E, mais uma vez, isto não é alheio à realidade de muitas mulheres pobres em Angola, sejam elas mães ou não. Um exemplo concreto é o caso das zungueiras, muitas lidam com esses dramas (com maior ou menor proporção em cada caso) e para piorar, num piscar de olhos, podem perder o pouco dinheiro que conseguiram no negócio quando são abordadas pelos fiscais, que representam o Estado e igualmente a violência sobre as mulheres a que o próprio Estado é omisso.

Considero Quarto de Despejo uma obra de leitura imprescindível, por isso, espero que leiam!

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