Lugar de escrita - As Alegrias da Maternidade

Obra de Buchi Emecheta

Por Helga Piçarra

É difícil falar sobre qualquer livro de Buchi Emecheta, sem antes conhecermos a autora, pois a sua necessidade de escrever, e de fazê-lo tão bem, é derivada da necessidade de partilhar com o mundo a sua dor. Nascida em Lagos na Nigéria, ingressou no ensino fundamental após persuadir os seus pais sobre a importância de educação para as meninas. Assim, após terminar os estudos, em 1962 imigra para a Inglaterra, na altura já casada. Apesar de ter tido 6 filhos, o seu casamento foi marcado por maus-tratos, abusos e outras violências atreladas a um relacionamento conflituoso. Foi nesta altura que Buchi aprofundou-se na escrita, como forma de “manter a sua sanidade”.

Do seu exercício de escrita nascem vários livros, entre os quais o maravilhoso “As Alegrias da Maternidade”, publicado em 1979. No entanto, é curioso que a narrativa não é tão alegre assim. É uma obra que nos leva a reflectir não só sobre a maternidade, mas, acima de tudo, sobre o conflito entre as tradições africanas e a modernidade ocidental, a fertilidade, a poligamia, a superstição e o propósito da mulher no seio familiar.

O livro conta a história de Nnu Ego, uma mulher nigeriana que tem o sonho de ser mãe. Nnu Ego é fruto de um relacionamento entre Agbadi, um líder africano de uma aldeia Igbo e da sua amante, Ona. Por não ser uma relação oficial e tumultuosa, causava desconfortos e ciúmes entre as mulheres do líder. Assim, após ter ficado doente, Agunwa, a primeira mulher de Agbadi, morre, sendo que é levantada a possibilidade de ter morrido por desgosto da relação extra-conjugal do marido. No seu funeral uma escrava é enterrada, tal como ditavam os costumes da tribo, para acompanhar a sua patroa na próxima dimensão. Revoltada por ter de morrer contra a sua vontade, promete voltar para martirizar a família. Não como escrava, mas como filha.

Nnu Egu nasce então 9 meses após este episódio com um sinal na testa similar ao da escrava enterrada, levantando suspeitas da concretização da praga da escrava. Algum tempo depois a sua mãe morre. Apesar disso, a menina cresce atentamente sob os cuidados do pai e das suas madrastas, quando completa 16 anos casa-se a fim de cumprir aquele que entende ser o seu propósito: ser mãe.

Na impossibilidade de ficar grávida, Nnu Ego sente-se desmerecedora de um casamento, passando a sofrer diversas humilhações públicas pelo marido e a sua família. Assim, desfaz-se o casamento e regressa à casa do pai. Uma vez que já era divorciada e considerada uma mulher imprópria para casar com outros homens da aldeia por não ter conseguido demonstrar a sua fertilidade, casa-se outra vez como primeira esposa de um homem que vive na zona urbana da capital da Nigéria. 

Em Lagos, Nnu Ego conhece um novo mundo, uma Nigéria transformada pelos costumes europeus: os homens têm empregos que na sua visão cultural são considerados femininos, pois lavam roupa e cozinham para os seus patrões; os filhos não significam riqueza, mas sim despesas pois a riqueza está associada ao dinheiro; os deuses da sua tribo são demonizados, e é obrigada a louvar a um Deus branco e loiro; a poligamia é crucificada; e não há fartura de alimentos, pois não há lavras – logo, a fome e a desnutrição eventualmente instalam-se no quotidiano das famílias.  

Apesar de sentir uma certa repulsa do novo marido, pois tem um modo de estar diferente face àquilo que considera ser um exemplo de homem, Nnu Ego fica grávida do seu primeiro filho pouco tempo após a sua chegada a Lagos. O menino morre antes de completar um ano e Nnu Egu mergulha num luto profundo, acreditando que desta forma a profecia da escrava no enterro de Agunwa estava de facto a materializar-se. Ainda assim, volta a engravidar, realiza o seu desejo e nos anos seguintes dá à luz a 9 filhos. Nnu Ego aprendeu que uma mãe deve sempre se sacrificar pelos filhos, pois eventualmente estes hão de cumprir com o que lhes compete e honrar os seus pais da mesma forma.

Entretanto, a influência europeia, a independência financeira da mulher, a importância dos estudos, a mistura de tribos, são temáticas novas para ela que é uma mulher de raízes Igbo fortes. E é aí que se dá a sua maior desilusão: perceber que fez tantos sacrifícios pela maternidade, para uma realidade que já não existe e que ela desconhece.

A história decorre num contexto socio-histórico em que  a Nigéria era colónia da Inglaterra, logo podemos observar o choque cultural entre europeus e africanos e como isso influencia o ego do homem africano. No início do seu casamento com Nnu Ego, Nnaife era disponível e prestativo para melhor acomodar a sua mulher, pois sendo filha de um líder deveria ser tratada com respeito. Entretanto, a pobreza, a extensão da família com o nascimento dos filhos, o casamento com outras mulheres e outras influências externas, transformam Naife num homem irresponsável, violento e inconsequente.

Durante a leitura é possível perceber a importância das nossas raízes, que até certo ponto devem ser preservadas. O livro explora o conceito de poligamia através da união de Nnu Egu com Nnaife. Além disso, evidencia também a forma como as mulheres africanas, apesar de se dedicarem à maternidade, sempre trabalharam com os seus homens lado a lado, quer seja nas lavras, nos mercados ou em qualquer outro tipo de actividade para a subsistência das suas famílias.

Por último, e talvez o mais importante, Buchi através da história de Nnu Ego faz uma forte crítica social ao peso da maternidade que é imposto às mulheres desde tenra idade como modo de demonstrar fertilidade e, dentre outras coisas, “justificar-se” o preço pago pelo dote. Ao longo do livro, vamos acompanhando a degradação desta mulher, não apenas física, mas psicológica também, devido aos inúmeros sacríficos que é obrigada a fazer para manter o seu casamento, a postura de primeira esposa e, sobretudo, para ser uma mãe exemplar.

Este é um livro muito intenso, nos propõe uma reflexão profunda sobre o papel da mulher e principalmente o que significa de facto a maternidade. É uma história a ser lida com bastante atenção: é sensível, real e crua.

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