Passo a passo, talvez, cheguemos lá.

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POR PAULA SEBASTIÃO

Foi aprovado, na semana passada, pela Assembleia Nacional de Angola, com 155 votos a favor a proposta do novo Código Penal, que vai substituir o de 1886. Há meses que ando à espera desta aprovação, ansiosa para ver se grande parte dos artigos que me entusiasmaram e preocuparam se mantêm ou não no novo código.

 Apesar de não ter lido ainda a versão final, acompanhei os debates públicos sobre a proposta e li o anteprojecto do Código Penal que circula online. E apesar de existirem vários artigos que não li nem analisei, há alguns sobre os quais não poderia deixar de falar, principalmente como mulher feminista LBTIQ em Angola.

Por isso, deixo aqui a minha reflexão sobre que artigos até então penso serem relevantes para a pessoas LGBTIQ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero, Intersexo e Queer). Começo com uma contextualização sócio económica e legal das pessoas LGBTIQ em Angola, seguida de uma reflexão sobre as previsões legais que julgo terem impacto para as pessoas LGBTIQ. 

Contexto sócio-económico da comunidade LGBTIQ:

A realidade sócio económica da comunidade LGBTIQ em Angola ainda é uma das mais desafiantes. Quaisquer políticas que abordem questões como orientação sexual e identidade de género ainda são inexistentes no país. O acesso ao emprego e à saúde, o estigma e discriminação ainda são uma luta diária para os indivíduos LGBTIQ.

Segundo o estudo realizado em 2011, intitulado “Tamanho da População, HIV e Comportamento entre Homens que fazem sexo com Homens (HSH) em Luanda, Angola: Desafios e Resultados no Primeiro Inquérito Biológico e Comportamental sobre o VIH e Sífilis”, [1],797 participantes elegíveis reportaram que 30,5% não têm ocupação e 52,9% não relataram renda no mês passado.

Quando se trata de discriminação, quase metade dos Homens que fazem sexo com Homens (HSH) (171,46,2%) relataram ter sofrido algum tipo de violência em sua vida, isto é, foram agredidos fisicamente ou discriminados com relação à homofobia, sendo que 133 ( 70,4%) relataram tais episódios. Entre os que relataram episódios de discriminação em razão da orientação sexual (165), 40,1% afirmaram ter ocorrido muitas vezes nos últimos 12 meses, no trabalho, na escola, nos negócios e nas áreas de recreação.

Este é um dos poucos estudos que nos dá estatísticas referentes às problemáticas enfrentadas por Homens que fazem sexo com Homens, nos quais se englobam os homens Gays, dando-nos, portanto, um levantamento, embora parcial, sobre a pessoas LGBTIQ, uma vez que não faz qualquer referência relativamente a Lésbicas, Bissexuais e Homens Transgénero.

No que se refere a estatísticas e inclusão em políticas, nós, mulheres Lésbicas, Bissexuais e Queer (LBQ) continuamos invisíveis sem quaisquer estatísticas específicas seja na luta contra o HIV , seja nas políticas de género adoptadas pelo Governo.

Contexto legal

Durante muito tempo o artigo 71.º Código Penal foi interpretado no sentido de que: 1) criminaliza a homossexualidade em Angola por estipular medidas de segurança aplicáveis a “práticas de vícios contra a natureza”; 2) criminaliza o trabalho de sexo por estipular medidas de segurança às “prostitutas que sejam causa de escândalo público ou desobedeçam continuamente às prescrições policiais”.

No entanto, nenhuma destas práticas consagra necessariamente uma pena de prisão.  Embora o artigo 71.º seja acompanhado do artigo 70.º, referente às medidas de segurança aplicáveis aos comportamentos descritos, tais como a) o internamento em manicómio criminal; b) o internamento em casa de trabalho ou colónia agrícola; c) a liberdade vigiada; d) a caução de boa conduta; e) e a interdição de exercício de profissão, não fala expressamente em homossexualidade e tanto um artigo como o outro não consagram uma pena de prisão.

O que suscita sempre o velho e bom debate : a homossexualidade em Angola é crime ? 

A interpretação dada ao artigo 71.º no sentido de que "criminaliza" a homossexualidade tem a sua origem num longo historial de aplicação de normas como estas em países africanos, que embora não refiram expressamente os termos “orientação sexual” ou mesmo “homossexualidade”, condenam a conduta homossexual recorrendo a uma linguagem semelhante à que encontramos nas nossas previsões legais. A diferença entre esses ordenamentos jurídicos e o nosso reside no facto de naqueles tais condutas serem punidas com penas específicas, criminalizando, de facto, a homossexualidade, enquanto que no nosso são aplicadas medidas de segurança.[2]

Assim sendo, o artigo 71.º não deixa de constituir uma abertura para a condenação da homossexualidade, condenação essa advinda, em grande parte, de uma discriminação baseada em crenças culturais e religiosas.

Sobre o impacto do novo Código Penal  para pessoas LGBTIQ

1.    A Eliminação dos artigos 70.º e 71.º referente a medidas de segurança

Utilizado para condenar práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, o n.º 4 do artigo 71.º do Código Penal tem sido interpretado como a “criminalização” da homossexualidade em Angola. A eliminação deste artigo no novo Código Penal é portanto um marco importante para a comunidade LGBTIQ angolana.

O mesmo artigo estabelece ainda, no seu n.º 5, a aplicação de medidas de segurança a trabalhadoras de sexo. Ora, sendo a prostituição um dos maiores recursos económicos para algumas pessoas da comunidade LGBTIQ face a falta de acesso a emprego, principalmente para mulheres transgénero, a eliminação desta norma afecta-as directamente.

Neste âmbito, é de louvar o trabalho que muitas ONG’s, principalmente na área da saúde, têm feito para dar resposta a algumas problemáticas estruturais que afectam pessoas LGBTIQ – a violência que afecta as trabalhadoras de sexo, por exemplo – defendendo os seus direitos e sensibilizando órgãos chave para a mudança dessa problemática, como é o caso da polícia. Contudo, não constitui qualquer novidade que a prática nem sempre acompanha o que é estipulado por lei.

De facto, embora o artigos 70.º e 71.º tenham sido eliminados, a prostituição e a homossexualidade  continuarão a ser vistas como práticas não aceites socialmente. Para combater o estigma e discriminação que surge dessa não aceitação, a eliminação desses artigos deve ser acompanhada de aplicação de medidas não discriminatórias por parte do Governo, seja nas suas instituições, seja no exercício de actividade dos seus funcionários. 

2.    A inclusão da não discriminação com base na orientação sexual ao longo de todo o código e, em específico, no local de trabalho

A grande novidade deste Código Penal é a inclusão da orientação sexual como um elemento para a não discriminação. O documento fá-lo ao longo de vários crimes dentre os quais o de difamação, calúnia e ameaças. É a primeira vez  que num documento legal, em Angola, se encontra a expressão “orientação sexual”.

No que diz respeito à não discriminação destacamos o artigo referente à discriminação, pois é sem dúvida a grande estrela do código, sendo que estipula a não discriminação seja com base em que fundamento for, incluindo a orientação sexual, para as questões de acesso e despedimento ao emprego e outros serviços.

Tendo em conta que o acesso ao emprego para pessoas LGBTIQ continua a ser uma das principais barreiras sócio-económicas com as quais as mesmas se deparam, a  inclusão da previsão legal que consagra, pela primeira vez, a expressão “orientação sexual” no texto do artigo é, sem dúvida, um dos maiores momentos deste novo Código Penal.

Ademais, trata-se de uma norma sobre não discriminação no local de trabalho, o que pressupõe que o legislador tenha, de facto, analisado as condições de acesso ao emprego em Angola, bem como a taxa de desemprego que já ronda os 20%, evidenciando e reconhecendo que uma das barreiras tem sido a orientação sexual. Contudo, é importante não deixar de referir que a inclusão desta previsão legal no novo Código Penal é fruto do trabalho árduo de activistas LGBTIQ, organizações da sociedade civil e seus aliados, que nos últimos anos têm continua e incansavelmente defendido os direitos das pessoas LGBTIQ.

3.    O crime do aborto e respectivas excepções

A 11 de Março de 2017, o Ministro da Justiça e Direitos Humanos, Rui Mangueira e o relator da primeira Comissão dos Assuntos Constitucionais e Jurídicos da Assembleia Nacional, Virgílio Tyova[2], ponderavam a proibição do aborto em absoluto na então proposta do novo Código Penal, não incluindo, portanto, as excepções dentro das quais o aborto é permitido.

Como vimos, não foi esta a posição acolhida no novo Código Penal. De facto, a previsão legal mantém-se e embora não tenha sido despenalizado, o aborto foi um dos temas mais discutidos durante o processo de aprovação do novo código, tendo sido retirada da mesa a hipótese da proibição do aborto em absoluto, permanecendo, assim, as referidas execepções.

Isso deve-se, sem dúvida alguma, à mobilização feita pelas mulheres que, pela primeira vez, ocuparam as ruas de Luanda para exigir os seus direitos, convocando a marcha pela despenalização do aborto realizada a 18 de Março de 2017[3].

Como feminista e ciente de que esta previsão legal afecta todxs as mulheres, incluindo as LGBTIQ, não poderia deixar de mencioná-la, uma vez que apesar de parcial, por não se tratar ainda da despenalização total do aborto, é sem dúvida uma conquista para o movimento feminista. 

4.    Criminalização da transmissão dolosa de doenças sexualmente transmissíveis

 A inclusão deste artigo no novo Código Penal afecta não só pessoas LGBTIQ,  mas também as pessoas que vivem com VIH e a população em geral. São vários os países africanos que têm recorrido à criminalização da transmissão dolosa de doenças sexualmente transmissíveis como uma forma de combater os novos casos de infecção das mesmas, muitas vezes cingindo-se à criminalização da transmissão dolosa do VIH.

O debate sobre este artigo reteve-se ao agravamento da pena de prisão, que passa a ter uma moldura penal de 10 a 25 anos, equiparando-se, assim, ao crime de homicídio[4]. Em momento algum houve um debate social ou mesmo virtual sobre o impacto de uma medida como esta, como aconteceu como alguns temas da proposta do Código Penal, como foi o caso aborto.

Verificamos, portanto, que “A criminalização do VIH é um fenómeno global crescente. Embora não existissem leis penais específicas para o VIH no início do século XXI na África Subsaariana, hoje 31 países já promulgaram estatutos criminais específicos para o VIH. Globalmente, cerca de 70 países adotaram leis que permitem : a) a criminalização do VIH; b) a acusação de não revelação do VIH; c) a exposição e transmissão não intencional.”[5]

Como vimos, Angola não é excepção, tendo o novo Código Penal adoptado, sem dúvida alguma, essa prática, obrigando a notificação do parceiro e criminalizando a transmissão dolosa. O código vai ainda mais longe ao diferenciar os tipos de doenças sexualmente transmissíveis, qualificando-as como menos graves e mais graves.

Políticas como esta, para além de não existirem dados de que realmente funcionem, desumanizam e culpabilizam as pessoas que vivem com VIH, desencorajam a testagem, não implicam um maior uso do preservativo, incentivam a violência quando divulgado o estado serológico e não facilitam a entrada a tratamento para quem é portador do vírus.

Numa sociedade como a nossa em que: (i) fazer a testagem de VIH ainda é um tabu e vergonha, principalmente para mulheres e grupos marginalizados, como é o caso de pessoas LGBTIQ; (ii) quem vive com VIH enfrenta situações de violência ao partilhar o seu estado serológico a parceiros, familiares e amigos – mais uma vez, principalmente, para mulheres e populações marginalizadas, como as LGBTIQ; a aplicação de medidas como estas criam graves problemas de acesso a serviços de saúde para quem tão pouco ou nenhum acesso tem.

Por outro lado, tais medidas não resolvem necessariamente a questão das doenças sexualmente transmissíveis, contribuindo para uma maior culpabilização dos portadores da doença, bem como para problemas estruturais sobre os quais a maior parte dos estados que adoptam estas medidas não sabem responder, tais como: sobre quem recai o ônus da prova? Como vão conseguir provar quem transmitiu a quem? Como vão provar o dolo? Qual a resposta de apoio dentro da prisão em termos de medicamentos e cuidados para uma vida saudável para as pessoas que vivem com VIH?

Mais ainda, é preciso ter em conta que esta medida afecta não só quem já tem problemas de acesso a serviços de saúde como as pessoas LGBTIQ, como também toda a população, pelo que respostas legais como esta não servem para um combate ao VIH ou qualquer outra doença sexualmente transmissível. 

Resta-nos, então, esperar e ler na íntegra cada artigo do recém aprovado Código Penal. Contudo, mesmo sem ter olhado ainda para a versão final e ciente de que o anteprojecto deverá ter sofrido algumas alterações, não deixamos de  emitir um grito de felicidade. 

Esta talvez seja uma das maiores  conquistas LGBTIQ com o cheiro a igualdade a fazer-se sentir.

Afinal, a passo e passo, caminhamos e, talvez, cheguemos lá.

NOTAS DE RODAPÉ:

[1] https://www.pepfar.gov/about/research/pubs/date/2014/263600.htm

[2] http://www.novojornal.co.ao/sociedade/interior/novo-codigo-penal-proibe-o-aborto-em-absoluto-ha-outras-formas-de-salvaguardar-a-vida-da-mulher-no-caso-de-o-feto-por-em-risco-a-sua-vida-37090.html

[3] https://www.ondjangofeminista.com/ondjango/2017/3/14/o-ondjango-feminista-apoia-a-marcha-das-mulheres-pela-despenalizao-do-aboro

[4] http://vozdeangola.com/index.php/sociedade/item/3537-25-anos-de-cadeia-para-quem-transmitir-vih-sida?fbclid=IwAR00Ks7XhuUpjBjfP1Rewt3usUqv2aVWQJKpZnaScPltM3OQ2kpb7LaVCwI

[5] http://www.arasa.info/news/equipping-lawyers-and-activists-skills-counter-criminalisation-hiv-and-tb/

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