Angola, o país do "se desemerda"!

Ilustração por Alyssa Kiefer

Ilustração por Alyssa Kiefer

Por Tchenguita

- Maria Luísa, a mãe da Mely morreu

Foi a primeira mensagem do dia que recebi, da minha irmã. Confesso que o dia já não havia começado bem, já havia recebido uma notícia triste antes. Mas essa me partiu o coração, não consegui suster as lágrimas. Eu cresci com a mãe da Mely, aliás, como na tradição da minha mãe que os pais herdam o nome dos filhos, eu nunca soube o nome da mãe da Mely. Só sabíamos que era mãe da Mely.

Lembro-me que adorávamos a Mely de bebé, porque a sua mãe cuidava dela como uma boneca de porcelana e o bairro inteiro também. A Mely era a bebé mais querida da vizinhança e todos queriam pega-la. A mãe da Mely era tão maternal, tão cuidadosa com a filha. Estava sempre linda, a Mely, a mãe podia estar com roupas velhas, mas a filha jamais e sempre muito cheirosa. O pó de talco que lembrava um paraíso com um cheiro fofo de inocência e ingenuidade.

A mãe da Mely casou-se novamente, a Mely ficou com as avós. O doce pegajoso que pintava os dedos e sujava a roupa da infância desvaneceu-se. Crescemos todos.

Infelizmente a mãe da Mely foi diagnósticada com cancro da mama. Num país que faz campanhas sobre a doença todos os meses de Outubro de todos os anos, gasta-se milhões nos “Outubros Rosas” da vida e negligencia-se doentes com cancro na vida real, álias, doentes com cancro não, doentes pobres com cancro. A doença foi detectada cedo, mas o hospital público deu tanta volta até se transformar num tumor maligno e a mãe da Mely perder a ponta do seio e quando o caso já não tinha mais solução decidiram “devolvê-la” a casa.

O Nosso bairro pobre já perdeu muitas mulheres por serem pobres, simplesmente por isso.

A Chaty morreu porque já tinha dois filhos, era empregada doméstica, ganhava pouco, numa época em que não se discutia sobre os direitos das empregadas, a Chaty engravidou, acuada, com duas crianças cujos pais não assumiram, decidiu que este não teria. A Chaty morreu de hemorragia interna, por fazer um aborto clandestino.

A Suzy também já tinha duas crianças de dois relacionamentos infrutíferos, sobrevivia de um mil de um pagante ou de outro, nestes encontros sexuais, a Suzy engravidou. Não podia mais sustentar três bocas, vivia com os pais na casa de renda com mais quatro irmãos. Era demais. Decidiu mandar “para a Espanha”, dias depois descobriu-se que haviam ficado restos no interior e estavam a apodrecer. Não resistiu e morreu, por recorrer a um sapateiro.

A Mayola queria a criança, seria o seu primeiro filho, comprou o enxoval todo, fez meias de renda e bordadas. O seu quarto seria junto com a criança, humilde mas limpinho. Com tudo que um primogênito tinha direito. No dia do parto a Mayola foi abandonada. Era filha de ninguém. Perdeu os sentidos, o bebé estava com a cabeça virada para cima, a Mayola sozinha, sem auxílio, acabou por não aguentar e veio a falecer. A família soube apenas três dias depois.

Perdi as minhas vizinhas, enquanto crescia, todas elas jovens, todas elas com pouca escolaridade, todas elas massa, número, estatística. Como elas, ao redor de Angola tantas outras mulheres têm morrido pela pobreza extrema e o abandono, pela falta de políticas públicas que as inclua. Num país em que a luva do hospital sai directamente do bolso do paciente, não via imposto, directamente. Onde todos os serviços são privatizados e quem é pobre ainda tem de pagar para ter direito a cidadania. Um país onde nada funciona.

Hoje, mais uma vez me vi com vontade de desistir, sem esperança. 24 anos sem saber como será o meu amanhã. Quando chegará o meu dia de morrer, sendo que não era para ser. Quero fugir daqui, não sei por que ainda luto, nem sei se luto por direitos ou para sobreviver apenas.

Este país que me nasceu, é o país que me mata todos os dias. Em que a pobreza virou eufemismo, andamos entre a miséria e a indigência. Ou tu te desemerdas ou continuarás na merda.

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Nota: para ler outras crónicas da Tchenguita, visitem o blog https://marialusafernandogarcia.medium.com/

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