SORORIDADE: Uma Ferramenta Política Importante!

Ilustração por Priscila Barbosa

Ilustração por Priscila Barbosa

Por Leopoldina Fekayamãle

Sororidade é uma das palavras mais usadas no Feminismo. E usamo-la por ser sempre pertinente e também um símbolo de Resistência! Um símbolo de Resistência a um contexto que nos socializa a guerrearmos contra outras mulheres, a odiá-las, a competirmos com elas, a descredibilizarmo-las o máximo possível, tudo isso, para benefício e manutenção do patriarcado. Aqui, antes de avançar, importa relembrar o conceito de patriarcado que, evocando a Carta Africana de Princípios Feministas para as Feministas Africanas, é definido como “o sistema de autoridade masculina que legitima a opressão das mulheres através de instituições políticas, legais, económicas, culturais, religiosas e militares. O acesso e controlo dos homens sobre os recursos e recompensas dentro da esfera privada e pública ganha a sua legitimidade na ideologia patriarcal de dominação masculina.” Ao patriarcado convém que estejamos mais ocupadas apontando o dedo umas às outras, que sejamos moralmente mais duras com outras mulheres em relação às suas acções porque assim, muitas vezes, permanecemos distraídas em relação a coisas realmente importantes como questionar e buscar alternativas a esse sistema.

Sendo o patriarcado um sistema complexo, que define e separa os nossos papéis sociais com base no sexo biológico, que permeia as nossas relações sociais e dita o que se espera das mulheres cultural e socialmente, naturalmente, não se abala, não se desestrutura e não se lhe pode fazer oposição de forma individual. Apenas colectivamente é possível reflectirmos na profundidade do patriarcado, na forma como afecta as nossas vidas, como nos subalterniza, como nos desumaniza e justifica os vários tipos de violência de que nós mulheres somos os principais alvos. Por isso, a palavra sororidade é importante para o movimento feminista, em absolutamente todos os contextos sociais e políticos. É uma palavra cujo conceito precisa ser relembrado e (re)absorvido quantas vezes forem necessárias. 

Entretanto, importa realçar que o conceito de sororidade que configura um caminho imprescindível na luta contra todos os sistemas de opressão para as mulheres vai além da habitual definição de união e amor entre as mulheres. Não é menos importante que haja amor, companheirismo e amizade entre mulheres, mas é preciso não ter ilusões sobre sermos todas amigas do dia para a noite; é preciso não cairmos na armadilha de que todas as mulheres tornam-se necessariamente amigas, amam-se automaticamente quando entendem que é necessário questionar, desmantelar e buscar alternativas ao patriarcado com intuito de construir sociedades mais justas para todas as pessoas. 

Mulheres são humanas, pessoas sujeitas a não lidar bem com vários tipos de personalidades e a não criar automaticamente laços com outras mulheres: é normal, é natural. Laços de amizade levam tempo a serem construídos, podem ou não emergir de relações de trabalho e no processo de activismo, mas pode sempre existir respeito e admiração entre mulheres. E é tendo em conta estes factos que urge cada vez mais interiorizarmos que as nossas diferenças de personalidade não nos devem impedir de fazermos alianças de trabalho e políticas. Nisto, tomemos em atenção o exemplo dos homens, descrito por Stoltenberg (apud bell hooks, 2018):

“(…) A união masculina é política e generalizada. Ocorre sempre que dois homens se encontram. Não se limita exclusivamente a grupos de homens. É forma e conteúdo de todo e qualquer encontro de dois homens. Os rapazes conseguem aprender muito cedo que é melhor conseguirem unir-se. O que aprendem para isso é um complexo código comportamental de gestos, linguagem, hábitos e atitudes, que de facto exclui as mulheres da sociedade dos homens. A união masculina é como os homens aprendem uns com os outros que, no patriarcado, têm o direito ao poder na cultura. A união masculina é como os homens conseguem esse poder, e a união masculina é como esse poder é mantido. Logo, os homens impõem um tabu contra a desunião – um tabu fundamental para a sociedade patriarcal.”

Stoltenberg descreve como a união dos homens, independente de laços de afinidade (de grupos de homens), é construída no sistema patriarcal através de gestos, linguagens e atitudes. Isto é mais uma forma para entendermos a complexidade e profundidade do patriarcado e o seu modo de fortalecer o poder masculino. Meninos são educados desde cedo, por um conjunto de valores, que existem para liderar, para serem os que definirão os rumos da família e da sociedade ocupando postos de tomada de decisões importantes; meninos são educados a ter e a exercer poder sobre os outros que, na maioria das vezes, são as mulheres. Não é à toa que muitas vezes ouvimos e usamos frases como “os homens sabem defender uns aos outros”, “os homens protegem-se uns aos outros”: é parte do sistema patriarcal essa construção da união masculina, é uma união que gera mais poder, que reforça mais poder, que mantém o poder nas mãos dos homens, e reforça-lhes a certeza de que têm o direito de existir plenamente na sociedade como sujeitos.

Outro exemplo de como a união masculina é uma estratégia importantíssima para a sobrevivência do patriarcado e para a legitimação da violência contra as mulheres é a forma como os homens são ensinados, mesmo quando não se conhecem, a justificarem, a desculparem e a encobrirem actos de violência contra as mulheres. Quando uma mulher é violentada (sexual, física ou psicologicamente), quando é assediada sexualmente, quando é alvo de assassinato de carácter por um homem, os outros homens à volta, próximos ou não, têm a tendência de justificar as acções do agressor e culpabilizar a vítima. Quando vamos para o campo das políticas públicas, muitas vezes, questões como o acesso e o melhoramento dos serviços de saúde, de educação, de justiça não têm em conta as assimetrias entre homens e mulheres e as desigualdades históricas de que nós mulheres temos sido alvos há séculos, porque quem detém o poder para controlar e definir para onde os recursos devem ser canalizados são maioritariamente homens, negligenciando assim questões importantes para a vida e bem-estar social das mulheres. 

O Relatório Analítico de Género de Angola do Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher (MASFAMU, 2017) deu conta de algumas assimetrias entre homens e mulheres que são importantes de se ver na definição de políticas públicas. Até 2017:

- A taxa de alfabetização na população angolana com 15 anos ou mais rondava em 80% para os homens e 53% para as mulheres. 

-  A taxa de emprego para as mulheres entre os 15-64 anos rondava em 34.1%, enquanto que para os homens em 46.6%. Contando que a maioria das mulheres e jovens raparigas estão inseridas no mercado informal. 

- Nos casos de Violência Doméstica por tipo de vítima as mulheres representavam 78% das vítimas e as crianças 22%.

Estes são dados de até quatro anos atrás e, infelizmente, os quadros não melhoraram muito. São dados importantes que informam desigualdades no acesso a direitos fundamentais para a vida social das pessoas e, principalmente, devem constituir-se como base para a definição de políticas públicas que acabem essas assimetrias tendo em conta a necessidade de se promover mais justiça social para as meninas e mulheres em Angola. Sabemos o que implica não ter acesso devido à educação, a empregos devidamente remunerados e estáveis; sabemos o que implica ser o principal alvo de vários tipos de violência incluindo a doméstica, sabemos como isto afecta negativamente a vida das mulheres. Entretanto, melhorias só poderão ocorrer se o poder estiver melhor distribuído, se as mulheres em Angola questionarem cada vez mais a estrutura patriarcal de poder e buscarem em conjunto alternativas a esse sistema. 

O patriarcado actua de várias formas, reinventa-se, por isso, é imprescindível constantemente reavivarmos em nós os significados da sororidade e a sua importância. Dando-se aqui valor fundamental ao significado de sororidade como aliança política entre mulheres, baseada na noção de que somos oprimidas enquanto grupo, e que é necessário trabalho e esforço colectivo para definir estratégias de luta que permeiem estruturas de poder, que as questionem e que tragam alternativas de sociedades mais justas e equitativas para todas as pessoas. 

Quero com esta conversa sobre sororidade dizer que seremos ou devemos ser todas activistas feministas? Não. Não tenho tantas ilusões assim, nem romantismos. Quero com isto dizer que importa estabelecermos alianças políticas entre mulheres porque é do nosso interesse, enquanto grupo, consciencializar o máximo de mulheres possíveis sobre o funcionamento do patriarcado e de outros sistemas de opressão. A consciencialização é uma ferramenta poderosa no processo de mudança de postura e de actuação na sociedade. A consciencialização informa as nossas decisões e posições individuais e colectivas.

As nossas alianças políticas podem ser um caminho importante para a construção de uma Angola onde mulheres não sejamos mais o principal alvo dos vários tipos de violência. Termino aqui, deixando as palavras de Edda Gaviola (apud Rossi, 2020) sobre alianças políticas entre mulheres, sem romantismos:

As cumplicidades políticas são as mais difíceis de construir. Estou convencida de que, para fazer isso, é necessário ter projetos comuns, pensar juntas e se reconhecer profundamente na outra, nos seus saberes e autorias, a fim de alcançar a aprendizagem recíproca. Mas também partir de uma rede de ideias comuns, uma análise crítica e compartilhada da realidade e da experiência histórica das mulheres, capaz de fluir e transcender no ato que vai do pessoal ao político.”

Pensemos juntas, sigamos juntas, em diferentes espaços, estabelecendo redes até que nenhuma mais fique para trás. Seguimos!

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Referências Bibliográficas

African Women’s Development Fund. (2017). Carta Africana de Princípios Feministas Para Feministas Africanas.

Angola. Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher. (2017). Relatório Analítico de Género de Angola. Luanda: MASFAMU.

hooks, bell. (2018). Não Serei Eu Mulher? As Mulheres Negras E O Feminismo. Lisboa: Orfeu Negro.

Rossi, Aline. (Org.). (2020). Da Organização Política Feminista: Memória, experiência e bases para a luta feminista (PDF)

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