Lugar de escrita - O Ventre do Atlântico

cartaz e livro "o ventre do atlantico"

OBRA DE FATOU DIOME

Por Tabitha Dorcas

Fatou Diome nasceu em 1968, em Niodior, uma pequena ilha do Senegal. Foi criada pela avó e desde cedo teve paixão pela literatura francesa, ao ir para escola inicialmente às escondidas. Licenciou-se em Literatura Moderna na Universidade Marc Bloch de Estrasburgo, na França. Em 2001, ela publica o romance Le Ventre de l’Atantique (O Ventre do Atlântico).

O Ventre do Atlântico é o seu primeiro romance onde, dentre outros aspectos, encontramos um pouco de autoficção (tendo em conta as similaridades entre a personagem Salie e Fatou Diome). Este romance aborda temas como imigração, família, casamentos polígamos, exílio, fuga e nostalgia. Trata principalmente da imigração a qualquer custo,  para todos aqueles jovens africanos que procuram melhores condições de vida na diáspora sem terem uma real noção sobre como é a vida lá fora.

Salie, que é a protagonista e narradora do romance, é uma jovem senegalesa que vive em França. Madické, o seu irmão, que vive na ilha de Niodior em Senegal, sonha em ir para França juntar-se à irmã, para finalmente poder viver o seu sonho: ser um futebolista célebre. A narrativa centra-se nestes dois personagens: Salie e Madické. O pano de fundo é o ambiente futebolístico que atravessa o Atlântico e isso traduz-se nas diversas conversas por telefone entre os dois irmãos.

Salie é filha de uma mãe que a rejeitou desde o seu nascimento, de um pai desconhecido e foi criada e escolarizada pela sua amada avó materna. A rejeição da mãe a faz sentir-se segregada da sua comunidade desde cedo, razão pela qual, para Salie, viajar para França significa fugir da segregação, pertencer a um outro lugar, a uma outra comunidade.

Posta em França, Salie depara-se com outras formas de discriminação e outros desafios por outras razões: a segregação racial, o racismo puro e cru, as barreiras culturais, a nostalgia, etc. Apesar disso, torna-se-lhe difícil  determinar para qual dos dois países ela tem mais inclinação, porque considera que a sua estadia em ambos teve um grande impacto na sua vida.

No Senegal, especialmente no vilarejo da ilha de Niodior, ser imigrante da França confere à pessoa um status de superioridade, e o personagem L’homme De Barbès (Homem de Barbés) não foi excepção à regra. Este, passou de Zé Ninguém a alguém muito importante do vilarejo graças a esse status. Embora na França ele tenha tido uma vida miserável e tenha feito trabalhos que não considerava dignos, poder viajar de vez em quando de França para o Senegal, e poder trazer uma televisão (o que era uma raridade nessa comunidade), conferia-lhe vantagens como ser um dos polígamos mais concorridos da ilha e um comerciante importante, afinal, se ele viveu na França é porque foi próspero de alguma forma. L’homme de Barbès manteve em segredo as suas actividades na França e tornou-se um vendedor de sonhos, principalmente para os mais jovens. Transformou-se num símbolo de uma imigração bem sucedida. Ele, assim como muitas pessoas que conhecemos e já viveram na diáspora europeia, difundia a idéia de que viver na França é realmente o “El dourado”, porque supostamente o governo faz tudo para todos e todas, e os imigrantes facilmente tornam-se “ricos”.

As motivações para a imigração variam de pessoa para pessoa: de um lado temos Salie que procurava pertencer a um lugar, de outro lado temos L’homme De Barbès que procurava a glória da comunidade do vilarejo que nada sabia sobre a França. Mas também temos o caso de Moussa, por exemplo, que foi para a França graças ao seu talento para o futebol e, no entanto,  tão logo chegou deparou-se com a excessiva cobrança da família (sendo o filho mais velho e único rapaz, esperava-se muito dele), o ostracismo, o racismo, etc. Infelizmente para Moussa, ser bom no futebol não foi o suficiente.  Por fim, temos o caso do irmão de Salie, Madické, enfeitiçado pelos frequentes relatos do L’homme De Barbès, acreditava piamente que bastava Salie ajudá-lo a chegar a França, ia tornar-se num jogador célebre e rico como a maioria dos nossos irmãos africanos que lá jogam, e, talvez, até fosse para a Itália jogar.

Salie vê-se então diante de um desafio: como arranjar formas de explicar a Madické que não era assim que as coisas funcionavam, que ele devia preparar-se financeiramente e emocionalmente antes de querer sair da sua comunidade? Como é que Salie faria isso sem ser vista como uma má pessoa, influenciada pela intelectualidade e pelo individualismo do ocidente?  A comunidade já considerava Salie como uma individualista e egoísta.

Este livro convida-nos a questionar as nossas reais motivações sobre imigração. Deixar a nossa rede de apoio (família e amigos) em busca eufórica pelo refúgio e melhores condições de vida na diáspora ocidental pode carregar consigo armadilhas que a mídia faz questão de mascarar, uma vez que  a imigração para a europa é sempre vista como bem sucedida, podemos cair em desgraça.  Convida-nos a questionar as razões que nos levam a acreditar que o racismo é qualitativo sem o pendor quantitativo, no sentido de pensarmos que se diminui o racismo quando uma quantidade  considerável de negros passa a viver num ambiente hostil.  A nossa alienação em relação ao racismo leva-nos a pensar que quanto mais negros viverem na europa menos preconceito irão sofrer. E se perguntássemos aos nossos irmãos africanos da equipa francesa (que por sinal são a maioria) sobre o que eles vivem diariamente nos bastidores? E se questionássemos a razão deles serem considerados franceses quando ganham e serem considerados camaroneses, congoleses, senegaleses, etc., quando perdem?

Através desse romance profundo e cuidadoso, Fatou Diome mostra-nos também que nem todos os sonhos são para serem realizados, ou pelo menos, nem todos conseguirão realizar os seus sonhos, porque a vida é dura, infelizmente. Há quem consegue ter êxitos no próprio país, há quem consegue ter êxitos fora do seu país, e há quem, assim como ela, é híbrida, mas terá de lidar com a nostalgia, a solidão, a saudade e todos os desafios que a imigração acarreta.

Eu acredito que este é um livro importante de se ler, sobretudo para quem pensa em sair do seu próprio país e imigrar, porque nos confere algo como uma preparação emocional.

Fatou Diome tem uma forma tocante de escrever e este livro pode nos impactar de forma surpreendente.

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